O Supremo Tribunal Federal rejeitou, por 9×2, a tese do marco do marco temporal na véspera do dia em que marca os 109 anos do contato forçado do povo Xokleng com servidores do antigo Serviço de Proteção aos Índios (SPI) — anterior à Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). A decisão do STF foi vista como um presente para os autodenominados Laklãnõ e para outros povos indígenas. Isso porque o julgamento na Corte começou com o reconhecimento da existência de repercussão geral do Recurso Extraordinário 1.017.365, que discute uma reintegração de posse movida contra o povo Xokleng, em Santa Catarina. Os ministros entenderam que a data da promulgação da Constituição Federal não deve ser fixada como marco para a demarcação de terras indígenas.
A história do povo que está no centro do julgamento do STF é marcada por tentativas de extermínio e deslocamentos forçados. Em 22 de setembro de 1914, os líderes Kovi Pathé e Vomblé Kuzu se encontraram forçadamente com funcionários do SPI, com o intuito de colocar um fim aos assassinatos dos indígenas da etnia. Estima-se que a população xokleng tenha perdido dois terços de seus integrantes no século passado. O encontro de indígenas com o SPI ficou conhecido como “pacificação” e foi liderado por Eduardo de Lima e Silva Hoerhann.
Apesar do nome, o contato dos xoklengs com os funcionários do SPI não trouxe paz para os indígenas de Santa Catarina, pois a violência passou a ocorrer de maneira “institucionalizada”, por parte dos funcionários do Serviço de Proteção aos Índios. “Quando nossos líderes antepassados apertaram a mão do branco, no contato eles prometeram nos livrar dos bugreiros. No começo era assim; depois, não”, relatou o ancião Caxias Popó ao Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Eduardo de Lima e Silva Hoerhann passou a agredir e matar os indígenas, além de também submetê-los a trabalhos análogos à escravidão e se apropriar de seus territórios.
O pesquisador Clóvis Brighentti, da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila), conta que a extensão das terras do povo Xokleng foram diminuindo, pois eram vistas como propriedade por funcionários do SPI. “O século 20 pode ser caracterizado como um dos mais violentos contra os povos indígenas no Brasil justamente porque a prática era institucionalizada, era oficializada e legalmente amparada pelo regime tutelar a que eram submetidos os indígenas. A tutela era a extensão da guerra, era a impossibilidade de reação, o sentido mais desumano que se pode aplicar a um povo, tolher a liberdade e impedir que reajam”, afirma o pesquisador, no artigo Xokleng e a memória perdida: a história que é melhor não contar, divulgado pelo Cimi.
De cerca de 40 mil hectares reservados aos Xokleng, restou menos de 15 mil. As violências contra os povos indígenas, da colonização até a “pacificação”, eram perpetradas sob o argumento de “necessidade de civilização” dos originários. “A sociedade regional reconhece Eduardo de Lima e Silva Hoerhan como o herói pacificador, aquele que teve a audácia de estabelecer o contato e conviver com esse povo por praticamente meio século. Foi ele quem garantiu a tranquilidade para a sociedade regional, que impediu aos indígenas circularem por seu território tradicional, também foi o responsável por introduzir os valores e costumes das sociedades ocidentais no seio desse povo”, explica o pesquisador Clóvis. Em 1954, Eduardo foi preso, acusado de matar um indígena Kaingang.
E as violações contra o povo Xokleng não pararam por aí. Durante a ditadura militar, o SPI autorizou a construção da Barragem do Norte sem consulta prévia à comunidade. O empreendimento tinha o intuito de proteger as cidades de Ibirama, Indaial, Blumenau e Gaspar de enchentes no Vale do Itajaí. Entretanto, a construção resultou na inundação das terras produtivas dos indígenas, o que inviabilizou a subsistência deles naquela região e forçou deslocamento de famílias.
“Famílias desabrigadas; casas inundadas e condenadas; falta de água potável e alimentos; estradas interditadas; aldeias isoladas; cancelamento das aulas nas escolas; falta de acesso dos profissionais de saúde às aldeias; riscos de novos deslizamentos; insegurança e angústia pela próxima enchente. Esse é o cenário com que a comunidade precisa lidar após a construção da barragem”, destacou o Instituto Socioambiental (ISA).
Em 1998, a Funai reconheceu a necessidade de ampliação do território dos Xokleng, após todo o impacto sofrido nos anos anteriores. Em 2003, o Ministério da Justiça publicou portaria declaratória do território Ibirama-La Klaño. No entanto, o ato foi questionado judicialmente pelo estado de Santa Catarina. Em uma das ações desse processo, está a reintegração de posse contra os indígenas, autorizado pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, sob o argumento de que a posse de um território só pode ser garantido após a conclusão da demarcação. A Funai recorreu ao STF e daí surgiu a repercussão geral do recurso, no âmbito do julgamento do marco temporal.
Resistência
A rejeição do marco temporal foi amplamente comemorado pelos indígenas, pois assegura que a demarcação das terras indígenas não esteja atrelada a um prazo. Reconhecer terras tradicionais está ligado a manutenção da vida indígena, pois garante a segurança dos povos e a possibilidade de preservarem e reproduzirem suas culturas e crenças. Ao longo dos anos de violência, um dos impactos sofridos pelos Xokleng foi a diminuição da fala da língua nativa. A maioria dos membros mais jovens da etnia falam apenas o português. Por isso, com o intuito de resgatar a história e cultura, os indígenas desenvolvem oficinas na comunidade para ensinar a língua e artesanato tradicionais à juventude.
Outra ação de resistência do povo Xokleng- Laklãnõ, conhecido como “gente do sol” ou “gente ligeira”, é o projeto de reflorestamento da árvore araucária, considerada sagrada pela etnia. A iniciativa, liderada pelo Instituto Zág, foi agraciada com o Prêmio Equador 2023 do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). “O Instituto Zág é uma organização indígena liderada por jovens indígenas brasileiros que se concentra no reflorestamento e na preservação do conhecimento tradicional sobre a árvore araucária, conhecida como Zág, que tem valor sagrado e simbólico para o povo indígena brasileiro Xokleng. Suas ações de reflorestamento incluem a promoção de tradições ancestrais, a remoção de árvores invasoras e o alcance educacional. As realizações do Instituto Zág visam proteger a araucária como fonte de nutrição, medicamento e identidade cultural”, destacou a instituição responsável pela premiação.
Foto/crédito: Minervino Júnior/CB/D.A.Press
Reportagem: Aline Gouveia